Escorregou as costas frias pela parede de ladrilhos brancos cinzentos do banheiro até o chão. Perdidos olhos no muito vazio, fixavam-se no nenhum lugar.
trabalho vazio
casa vazia
coração vazio
O tubo de pasta de dentes vazio detonara seu perdimento.
Quando ainda quase no fim, havia renovado, na semana última, os votos da insípida vida a dois nada conjugada.
Todos esses pra trás dias, o tubo magro, retorcido já, dava um tico espesso da substância única que comungava com o marido. Hóstia pastosa, espremida, ungia, como uma nesga de esperança. Instava que tudo ia bem. Resíduo das coisas, lembranças, de uma quase alegria difusa que povoava a memória gasta do apartamento.
Resistira restando a gosma branca da pasta que ele retirava com força, um pouco antes dela, que fingia dormir pra não se despedir, na cama, espaço um dia de rito, agora de sacrifício.
Hoje, tubo findo, procurara em vão um tubo outro de pasta de dentes nos mofados armários e via, afinal, que as sobras eram nada.
O conforto do cômodo incomodava seu corpo com o peso amassado do tubo.
Pegou a bolsa, as chaves do carro e ia saindo, depressa, portas abertas, lembrou-se de deixar-lhe um bilhete:
“Desculpe, a pasta de dentes ficou vazia.”
...é! com o tempo o sacro convívio pode tornar-se sim uma liturgia de vazios consagrada pela ausência no tubo da pasta de dente, ausências, vãos, valas... finda a fé mútua... mofados... que pode ressuscitar esses laços...? Lindo texto, prof! Certeira no alvo das relações q passam, todas, religiosamente pelos atos vazios de cada dia...
ResponderExcluirPerfeita reflexão, carregada de imagens concretas sobre a maioria das relações.
ResponderExcluirUma pancada na cabeça de quem consegue enxergar que os tubos se esvaziam inevitavelmente, mas poderíamos recarregá-los com um pouco de boa vontade. Afinal, relações não deveriam ser descartáveis...
E porque tudo vai passando, passam as massas gélidas da pasta íntima, perdem a validade, perdem a felicidade...
E se perdem porque não se procuram...
E não se indagam mais nem se contemplam mais...
Porque os olhos, esses traiçoeiros espelhos da alma, que também são as portas de entrada para um coração mesquinho, não repousam mais naquela figura que um dia foi clamor, ardor, amor...
Por que tudo parece mais radiante quando está bem mais adiante?
Lembrei-me ainda desse meu poema, emergido numa situação análoga:
[Amor Proibido]
A vida parece só ter mesmo graça
Nos braços de um amor proibido
Com perfume doce de um beijo maldito
Enquanto o eterno encanto não passa
São mais verdes os campos velados
Que guardam segredos quase tão possíveis
Sonham-se os sonhos todos incríveis
Roubam-se os tesouros de um outro guardado
Mas se é livre, perde-se toda ilusão
As portas abertas não contentam
Num rancho onde sonho, desejo e paixão
Escancarados não se contemplam
Mostram-se a cara, ocultam-se o coração
Reservam-se indecifráveis fendas
DG