voyeur

quarta-feira, 20 de julho de 2011

O vazio da pasta de dentes





Escorregou as costas frias pela parede de ladrilhos brancos cinzentos do banheiro até o chão. Perdidos olhos no muito vazio, fixavam-se no nenhum lugar.

trabalho vazio

casa vazia

coração vazio

O tubo de pasta de dentes vazio detonara seu perdimento.

Quando ainda quase no fim, havia renovado, na semana última, os votos da insípida vida a dois nada conjugada.

Todos esses pra trás dias, o tubo magro, retorcido já, dava um tico espesso da substância única que comungava com o marido. Hóstia pastosa, espremida, ungia, como uma nesga de esperança. Instava que tudo ia bem. Resíduo das coisas, lembranças, de uma quase alegria difusa que povoava a memória gasta do apartamento.

Resistira restando a gosma branca da pasta que ele retirava com força, um pouco antes dela, que fingia dormir pra não se despedir, na cama, espaço um dia de rito, agora de sacrifício.

Hoje, tubo findo, procurara em vão um tubo outro de pasta de dentes nos mofados armários e via, afinal, que as sobras eram nada.

O conforto do cômodo incomodava seu corpo com o peso amassado do tubo.

Pegou a bolsa, as chaves do carro e ia saindo, depressa, portas abertas, lembrou-se de deixar-lhe um bilhete:

“Desculpe, a pasta de dentes ficou vazia.”

2 comentários:

  1. ...é! com o tempo o sacro convívio pode tornar-se sim uma liturgia de vazios consagrada pela ausência no tubo da pasta de dente, ausências, vãos, valas... finda a fé mútua... mofados... que pode ressuscitar esses laços...? Lindo texto, prof! Certeira no alvo das relações q passam, todas, religiosamente pelos atos vazios de cada dia...

    ResponderExcluir
  2. Perfeita reflexão, carregada de imagens concretas sobre a maioria das relações.
    Uma pancada na cabeça de quem consegue enxergar que os tubos se esvaziam inevitavelmente, mas poderíamos recarregá-los com um pouco de boa vontade. Afinal, relações não deveriam ser descartáveis...

    E porque tudo vai passando, passam as massas gélidas da pasta íntima, perdem a validade, perdem a felicidade...
    E se perdem porque não se procuram...
    E não se indagam mais nem se contemplam mais...
    Porque os olhos, esses traiçoeiros espelhos da alma, que também são as portas de entrada para um coração mesquinho, não repousam mais naquela figura que um dia foi clamor, ardor, amor...
    Por que tudo parece mais radiante quando está bem mais adiante?

    Lembrei-me ainda desse meu poema, emergido numa situação análoga:

    [Amor Proibido]
    A vida parece só ter mesmo graça
    Nos braços de um amor proibido
    Com perfume doce de um beijo maldito
    Enquanto o eterno encanto não passa

    São mais verdes os campos velados
    Que guardam segredos quase tão possíveis
    Sonham-se os sonhos todos incríveis
    Roubam-se os tesouros de um outro guardado

    Mas se é livre, perde-se toda ilusão
    As portas abertas não contentam
    Num rancho onde sonho, desejo e paixão

    Escancarados não se contemplam
    Mostram-se a cara, ocultam-se o coração
    Reservam-se indecifráveis fendas

    DG

    ResponderExcluir